Através das obras de arte – peças produzidas em episódios sublimes de criação e que, em função da própria natureza, seguem à imortalidade (arrastando consigo os respectivos autores) -, os artistas expressam uma forma específica de ver o mundo [ou o pedaço de mundo que os interessa mais amiúde], despertando emoções e contribuindo para a formação da opinião pública a respeito das pessoas e das coisas.
Como impressões digitais, cada obra é única e, guardada a faixa das imitações e cópias, não reproduz e não é reproduzida por qualquer outra. Esta condição decorre da individualidade dos autores, que – em função da sensibilidade e modo individual de ver e mostrar o mundo – produzem artes peculiares. De fato, ao contrário dos cientistas, cuja atividade prima a lógica e é norteada por leis gerais que oferecem resultados uniformes e previsíveis, os artistas são guiados pela sensibilidade, percepção e estilo. Sobre este ponto, vale lembrar que, além da ancestralidade vinda na carga genética de cada um, muitos outros fatores contribuem para a individualidade dos artistas, com destaque para a influência neles exercidas pelo ambiente geográfico e social e, claro, pela memória cultural, histórica e política.
Vem da personalidade ímpar do artista, o caráter único das obras de arte, quaisquer que sejam elas e qualquer que seja a linguagem de manifestação. Assim ocorre no mundo da música, da coreografia, da pintura, da escultura, da literatura, da dramaturgia, do cinema, da decoração, da perfumaria, da culinária, da costura e de todas as outras artes, incluindo as expressões incipientes que despontam no horizonte dos novos tempos.
Na literatura, o artista exprime a sensibilidade através de textos, segundo os dotes e o estilo a ele conferidos pelo criador e por ele adquiridos ao longo da vida. E, nesse embalo, em verso e em prosa, conforme o caso, os escritores usam as letras em combinações estéticas que contam coisas do espírito, das pessoas, da humanidade, dos mundos, da realidade e da para-realidade circundante, proporcionando encanto compatível com as preferências dos leitores. Naturalmente, assim como em qualquer outra arte, os textos literários também são peças únicas. Afinal de contas, os textos traduzem sentimentos, formação e intenção de seres individuais, refletindo marcas peculiares. Assim, mesmo quando tratam assuntos semelhantes, [os textos] são distintos entre si.
Nesta perspectiva, observe, junto com os textos, independentemente das palavras usadas e das coisas escritas, ao praticar a arte que os anima, os autores, quase sempre de forma indireta e sutil, contam um pouco de si próprios, do modo como vêem e querem a humanidade e, também, [do modo como vêem e querem] o mundo. Isto não quer dizer, claro, que os textos sejam uma janela escancarada para o psiquê do autor. Quer dizer apenas que, por mais isento que seja, o autor não consegue abstrair-se das coisas que escreve e, de alguma forma, as vezes imperceptível, respinga parte do seu Eu pelo texto, deixando um pouquinho de si aqui e ali.
Antes, no entanto, de cogitar a transparência da alma dos escritores, vale registrar que, por mais qualificado e sensível, dificilmente o leitor consegue ‘ler’ um autor, decifrando sua intimidade a partir das pistas deixadas no texto. Na realidade, a linguagem da arte é misteriosa e, mesmo sabidamente pontilhada por mensagens do Eu do autor, a obra não desnuda claramente as suas entranhas [do autor]. Aliás, as obras de arte são marcadas por uma multiplicidade de pegadas, o que turva, ainda mais, as interpretações. Isso ocorre porque – em fenômeno sempre sentido, jamais provado e, poucas vezes, admitido e reconhecido -, por ocasião do ato de criação, os artistas recebem um tipo de ‘ajuda’ imaterial, como se, de repente, em ação extracorpórea, algum anjo ou musa lhes emprestasse quantuns da inspiração e de energia criativa e, nesta perspectiva, na condição de parceiros e coautores, também deixassem marcas pela obra, embaralhando Eus.
Tudo isso leva à conclusão de que, sendo fruto de uma ação afetada por estímulos externos indefinidos, além de coisas sobre o autor, incluindo história pessoal e circunstância, as obras também refletem um pouco da divindade e da humanidade. Mais ainda. Como – independentemente da linguagem, da Escola e do gênero artístico – são elaboradas a partir de conhecimentos, técnicas e ferramentas específicas, direta ou indiretamente, as obras de arte incluem informações sobre o tempo da sua confecção, estando, pois, contaminadas pelo germe da crônica. Esta é uma das razões das obras de arte – livros, quadros, pinturas, iguarias, fotografias, coreografias, indumentárias, dramaturgias, filmes, jogos digitais, etc. – tanto interessarem aos cientistas sociais e historiadores de todos os tipos.
É, nesta perspectiva geral que a cena artística deve ser observada. Por isso, os livros devem ser lidos nas linhas e nas entrelinhas, nas palavras e nas ilustrações, nos corpos e nas capas, nas orelhas, apresentações, prefácios e posfácios, naquilo que está escrito e, também, naquilo que não está escrito. Ele deve ser lido no tudo e no nada, pois cada coisa e cada não-coisa diz algo. E, no embalo de uma eloquência vezes ruidosa e explícita, vezes silenciosa e indireta, a cultura literária avança.
A cada momento, para alegria daqueles que cultivam o hábito da leitura, o universo da literatura vem sendo animado por novas luzes e novos brilhos. Estrelas antigas ganham impulso, intensificando incandescências e lapidando antigos reflexos.