Em fenômeno verificado em todas as linguagens, do ponto de vista prático, as obras artísticas são uma construção coletiva. Afinal de contas, o efeito de uma obra de arte extrapola a ambiência restrita aos autores e envereda por outros terrenos, afetando e sendo afetado pelos sonhos e sentimentos daqueles que a desfrutam, em interferência (in)direta na sua essência e, portanto, na sua feitoria. Não é sem razão que, segundo máxima plenamente aceita nos meios artísticos, compete àquele que desfruta a obra de arte a palavra definitiva sobre ela. Na realidade, em certa medida, este fenômeno decorre de uma espécie de parceria-simbiose do autor com aquele que experimenta a sua obra, segundo um processo no qual, contextualizando a arte que lhe é disponibilizada nos seus próprios padrões – modo de ver o mundo, arcabouço intelectual, sensibilidade, etc. -, aqueles que contracenam com o autor as preenchem e as completam (preenchem e completam a obra original) com expectativas desenvolvidas no seu imaginário, fazendo-a mais ajustadas aos seus desejos e vontades. Neste processo, desfrutando um tipo especial de liberdade criativa, aqueles que fazem a fruição da obra não só descobrem aspectos desconhecidos até mesmo pelo autor, como, também, acrescentam outros, rescrevendo-a e dando o formato que, ao final, prevalece. Talvez, esta seja uma das razões de as publicidades das abras de arte costumarem apresentá-las em momentos de fruição e, não por ocasião da sua produção.
Por outro lado, por mais bela que possa parecer e por mais talentoso que seja o seu autor, se não passar por um processo de fruição intencional, a obra não manifesta a arte nela contida e, objetivamente, não pode ser considerada de natureza artística. Ou seja, enquanto não houver o efetivo desfrute da arte nela proposta, a peça é apenas um objeto – algo inserido na dinâmica vivida pelas pessoas, podendo, naturalmente, oferecer-lhes utilidades e servir, por exemplo, como peso de papel, [como] bloco de anotações, [como] tapa olho, [como] passatempo, etc. Aliás, no campo da arte, a fruição intencional é essencial para elevar um objeto ao patamar da arte. Assim, desde que tenha a beleza (qualquer que seja ela) percebida e desfrutada, qualquer ‘coisa’, por mais pueril, insossa, disforme e desprovida de atrativos que possa parecer, [qualquer ‘coisa’] pode ser considerada arte. Em contraponto, se não tiver a eventual beleza percebida e experimentada pelas pessoas – como acontece com coisas escondidas do público, como textos mantidos em gavetas bolorentas ou em arquivos de computador -, independente do prestígio do autor ou da carga estética que possa encerrar, mesmo que mereça valor e desperte cobiça, o objeto não alcança a condição de obra de arte.
Evidentemente, todas as observações aplicáveis às obras de arte também se aplicam ao livro e demais produtos da Literatura – a arte que tem a Palavra como forma de expressão. De fato, assim como nos demais objetos de arte, um livro não correspondido pela atenção de um leitor não pode ser considerado uma peça artística. Na realidade, como ainda não recebeu o olhar do leitor, cuja contribuição oferece o refinamento objetivo da obra original, um livro não lido é uma peça inacabada. Como corolário, tem-se que o autor desacompanhado da atenção de um leitor é um artista frustrado. Escritor e leitor, então, formam um par essencial para a concretização da arte literária, para a realização artística do autor e [para a] elevação do livro ao patamar das obras de arte.
No campo da arte das palavras, quaisquer que sejam as formas como se apresentem (e-books, papiros, tabloides, formatos digitais, etc.), um livro traduz a conjunção da sensibilidade e talento do artista da palavra com a contribuição daquele que faz a sua leitura. Assim, no processo que dá status artístico ao texto, ganha destaque, não só a produção dos livros – um universo que envolve o talento de escritores, capistas, revisores, designers, tradutores, diagramadores, gráficos e tantos outros artistas envolvidos na feitura dos exemplares -, mas, também, a sua leitura – o momento sublime de desfrute, fruição, deleite, reinterpretação e ressignificação dos textos, a atividade que, enfim, promove a realização da arte literária e justifica o trabalho artístico.
Aliás, é esta condição que concede importância aos ambientes propícios e acolhedores para o desfrute dos livros. Não é à toa, portanto, o valor atribuído pelas pessoas de cultura às bibliotecas, às associações literárias, aos clubes de leitura e a todas as agremiações que estimulam a fruição dos livros. Afinal de contas, elas integram um aparato de fomento cultural, voltado não apenas para estimular e impulsionar o hábito da leitura, mas, em essência, para facilitar a realização do ciclo do livro, a etapa que o eleva ao patamar das obras de arte.
É nesta perspectiva que se insere a Confraria das Artes – um charmoso grupo que atua no Recife com o objetivo de reunir pessoas em torno da leitura e da discussão de livros previamente escolhidos. Ao lado de outros propósitos – como ampliar círculos de amizades e estreitar a relação entre pessoas -, assim como fazem os clubes de leitura, a Confraria das Artes cumpre papel de grande relevância para a realização da arte literária, promovendo a interlocução entre pessoas e o livro, convertendo-as [as pessoas] em leitoras e convertendo-os [os livros] em obras de arte. Aliás, ao integrar o contraponto inversamente recíproco à produção literária, a Confraria das Artes se insere no seleto circuito de ambientes que contribuem para o processo de desfrute e, portanto, da realização da arte, dando significado a atividade dos escritores. Por estas e outras razões, a Confraria das Artes vem atraindo tantas atenções do mundo artístico e cultural da região – já passa de cem o número de seus associados – e merecendo tantas homenagens – como o galardão de ‘melhor grupo de leitura’ a ela atribuído pela Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural por ocasião da FLIPO 2022.
O mundo cultural de Pernambuco apresenta muitas coisas boas e, seguramente, a Confraria das Artes está entre as melhores delas.