Há muito tempo, o Leão de um circo acampado nas imediações do Shopping Center Recife aproveitou o descuido de uma família curiosa e, num único bote, capturou e devorou uma criança. O gesto do leão não foi criminoso, pois atendia a reclamos da sua própria natureza, inclusive ao instinto de sobrevivência. A atitude daquele leão estava acobertada pela chamada ‘irresponsabilidade moral’, uma condição que inocenta os gestos famélicos ou decorrentes de impulsos animais (mesmo assim, [ele, o leão] foi executado a tiros por um soldado PM, que, diante da tragédia, sem ter como restabelecer a vida da criança, resolveu fazer justiça com as próprias mãos, julgando, condenando e executando aquele a quem, sem qualquer investigação, tornou réu).
Contei esta história, não só para introduzir o conceito de ‘irresponsabilidade moral’ (que marca aqueles impulsionados pela própria natureza e cometem ‘coisas erradas’ sem qualquer sentimento de culpa, mas, também, para dizer que, como aconteceu com o Leão da história, mesmo aqueles que agem sem culpa, podem ser punidos).
Na realidade, o objetivo destas palavras é comentar sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro – o qual, como se fosse o Leão da história ou qualquer Irresponsável moral, age sem demonstrar culpa ou preocupação com o efeito ou repercussão dos seus atos e das suas palavras.
Acontece que, se, por um lado, as palavras e ações têm consequências, por outro, ele [Bolsonaro] (como qualquer outra pessoa não submetida a risco extremo e no pleno exercício das faculdades mentais) não tem motivos para exercer a irresponsabilidade moral. Mesmo assim, agindo como se não houvesse uma lei ou uma consciência a quem prestar contas, sempre contando com a impunidade atribuída aos mimados, pródigos e plenipotenciários, Jair Bolsonaro jamais demonstrou medo de errar.
Pelo contrário, como ficou claro durante a pandemia de coronavírus, [durante] as comemorações do bicentenário da independência, [durante] a campanha pela reeleição e durante tantas outras ocasiões e circunstâncias, Bolsonaro desdenhou as consequências que, eventualmente, pudessem vir a cobrar-lhe responsabilidades. E, agindo de forma irresponsável, Bolsonaro acumulou mais de 400 ações judiciais, muitas das quais, pouco a pouco, seguindo o ritmo do poder judiciário, vem se convertendo em condenações. Isto, no entanto, não tem alterado o comportamento de Jair Bolsonaro, que continua agindo como se nada tivesse ocorrendo.
Aliás, inaugurando um novo tipo de golpe, converteu as multas a ele aplicadas pela Justiça em motivo para solicitar donativos a seus apoiadores, tendo apurado milhões em depósitos por Pix. Nem mesmo a inelegibilidade a que foi condenado mudou seu comportamento e, como se nada tivesse acontecido, Jair Bolsonaro vem cumprindo uma agenda de viagens como se estivesse em campanha. No fundo, o desdém demonstrado por Bolsonaro excede da irresponsabilidade moral, caindo no campo do deboche, beirando o desacato ao Poder Judiciário brasileiro.
É hora de alguém conter Bolsonaro, caso contrário o Brasil cairá na vasta classe das terras sem lei, nas quais, a depender de quem sejam, todos podem agir como se irresponsáveis fossem.
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